“Para professores e escolas, é mudar ou morrer”
O professor emérito da UFSM, especialista em ensino e inovação tecnológica, Ronaldo Mota, diz que o atual sistema educacional é obsoleto e que o novo modelo só se erguerá se docentes e instituições ouvirem as lições de um ator: o aluno
Séculos depois do início da universalização do ensino e décadas após a introdução da formação profissional, a educação enfrenta uma terceira revolução. O motor é a tecnologia. Nem todos, porém, reagem bem ao terremoto, avalia Ronaldo Mota. Os alunos já podem estudar em casa e até obter diploma pela internet. Mas muitos professores ainda não perceberam esse movimento: serão engolidos pela tecnologia e perderão a atenção dos estudantes. O desafio das escolas de formar pessoas em um mundo de mudanças aceleradas em que a grande demanda é o aprendizado permanente. A despeito do atraso geral de instituições e mestres para lidar com a nova realidade – “O modelo de escola que conhecemos hoje será completamente extinto. O papel do professor, também” -, ele diz que o Brasil pode aproveitar a crise do modelo de ensino para promover uma grande transformação. “Temos uma população jovem, com nível de tolerância alto e flexibilidade diante de experimentos, elementos que favorecem a adaptação. Se fizéssemos disso um terreno para mudanças educacionais, provocaríamos uma grande transformação.”
A escola permanece absolutamente a mesma. Ainda mantemos a figura clássica do professor que entra na sala de aula e apresenta o conteúdo para os alunos como se eles não soubessem nada. Isso, porém, não deve nos dar a ilusão de que a escola não será transformada: ela será.
Que tipo de transformação será essa? O modelo de escola que conhecemos hoje será completamente extinto. O papel do professor, também. O processo de ensino e aprendizado será cada vez mais coletivo. Não será uma pessoa só, vai ser um time.
Nesse cenário, como será o ensino? Grande parte dos jovens já aprende parte do conteúdo escolar em canais que não dependem da escola. Mas muitos professores ainda não perceberam esse movimento: serão engolidos pela tecnologia e perderão a atenção dos estudantes. Não é o fim da escola, mas uma chance que se apresenta para aqueles alunos que não aguentam permanecer em sala de aula e que procuram mecanismos alternativos para adquirir o próprio conhecimento. Seria um erro concluir que a escola não é mais importante. Ela é, mas desde que reconheça a existência do novo processo e que saiba se inserir nessa realidade. Se a escola entender isso como um confronto, vai perder.
Se a escola não mudar, a evasão de alunos vai crescer? Sim. A escola já enfrenta esse fenômeno, ainda que se trate de uma evasão não contabilizada. O aluno é deixado pelos pais na escola, senta lá por algumas horas e finge prestar atenção às aulas. O professor, por sua vez, altamente desestimulado, deixa o aluno ali, muitas vezes evitando o conflito. Quando olhamos os resultados numéricos desse modelo educacional, concluímos que o ensino vai mal. Sim, está ruim, mas é mais grave que isso. Temos dois conflitos acontecendo ao mesmo tempo: o ensino tradicional vai mal no Brasil e vai mal em si. Para superar essa crise, precisamos melhorar a qualidade de ensino e, simultaneamente, transformá-lo. O Brasil tem uma real oportunidade de dar um salto significativo e mais rápido do que outros países se entender a importância da inovação.
Por quê? Tomemos como base os resultados do exame do Pisa (mais importante avaliação educacional do mundo, realizada em alunos com 15 anos de idade), da OCDE. A Finlândia está sempre nos primeiros lugares da prova, que avalia o ensino tradicional. Qual a consequência? Os professores finlandeses morrem de medo de mudar seu método de ensino: afinal, quem quer mexer em time que está ganhando? A Finlândia pode não conseguir enfrentar os desafios da inovação com tanta facilidade. O Brasil, por sua vez, não tem motivo para temer a mudança. Afinal, se olharmos para o ensino médio brasileiro, podemos afirmar que não há como piorar. Por isso, temos um campo vasto para aplicar metodologias revolucionárias. O Brasil tem 200 milhões de habitantes e 104 milhões de usuários da internet, que em média navegam mais do que pessoas de outros países. Temos uma população jovem, com nível de tolerância alto e flexibilidade diante de experimentos, elementos que favorecem a adaptação. Se fizéssemos disso um terreno para mudanças educacionais, provocaríamos uma grande transformação.
Quais os caminhos para a inovação? Precisamos usar metodologias que valorizem a aprendizagem independente. Desde a pré-escola até o pós-doutorado, o que fazemos é estimular o estudante a ser dependente do professor. Por que o professor que termina o pós-doutorado na universidade tem medo de sair do laboratório? Porque ele é dependente. Nos países mais desenvolvidos, o estudante é estimulado a encontrar seus próprios caminhos. Aqui, criamos uma estrutura de dependência tão grande que as pessoas são estimuladas a não abdicar da zona de conforto.
A única forma de preparar alguém para a inovação e para a aprendizagem independente é oferecer o conteúdo antes da aula e fazer com que os momentos presenciais e coletivos passem por um filtro: só participam desses momentos aqueles que demonstrarem o mínimo interesse. Se a criança sequer tocar no conteúdo antes, ela simplesmente não deveria participar do convívio. Sabemos, por vários experimentos, que se metade da turma estiver prestando atenção e a outra metade não estiver, a parte desinteressada contamina o restante do grupo e o resultado é um desastre. Se o professor usar um filtro inicial baseado em interesse e realizar os momentos coletivos somente com aqueles que demonstraram o mínimo de interesse, os resultados vão lá para cima.
E o que o professor faria com o estudante que não se interessa? Ele pode mandá-lo para a biblioteca, para uma sala de informática, para qualquer outra atividade. Vai ser normal que o aluno assuma que não pode assistir à aula porque não se preparou para ela, e terá que ser aceitável tanto para o gestor escolar quanto para os pais. Na próxima aula, ele vai se preparar para participar.
Que mudanças de conceitos são necessárias para a transformação de que o senhor fala? Todo o processo educativo tradicional é baseado na cognição, ou seja, como se aprende e como se ensina. O mais importante no futuro será a metacognição: o aluno terá que entender o processo ao que está submetido e conhecer seus avanços, obstáculos e deficiências. Ele precisa se enxergar no processo educacional. Isso abre a porta para um novo ponto: a classe não se dividirá mais entre aqueles que sabem e os que não sabem, mas dará espaço para um terceiro, que não sabe o conteúdo, mas sabe onde encontrá-lo. No mundo atual e futuro, é mais relevante a atitude de uma pessoa diante de uma pergunta para a qual ela não tem resposta, porque o acesso à informação não é mais crítico. O professor tem que esquecer essa ideia de que vai disputar espaço com a tecnologia. Não há chance de ele dominar mais esse tema que um jovem. Ele tem que achar mecanismos para dizer ao aluno: “Eu não sei essa linguagem como você sabe, mas eu estou disposto a compartilhar o que eu sei e aprender com você.” Mas fazer isso exige um alto nível de maturidade e metacognição para entender o papel de cada um. Ele não pode mais chegar na aula e dizer que sabe mais, pois não sabe mais sobre certas áreas, como as tecnologias digitais.
Não é, de fato, o que acontece hoje nas escolas, certo? Não, ainda temos a maior parte dos professores pedindo que seus alunos desliguem o celular durante as aulas. Mas eles não conseguem, cada vez que ele vira para frente, o estudante está lá teclando. O problema real não é esse, os jovens conseguem perfeitamente acompanhar os dois e não haverá como mudar isso. As crianças não vão mais aprender equação de segundo grau na escola. Elas vão procurar um vídeo, com um bom professor, e vão aprender na hora que querem, como querem, com algum nível de interatividade. O espaço tradicional de ensino hoje mais se assemelha à tortura do que ao ensino.Tenho a esperança de que a escola vá reconhecer esse movimento e se reconceitualizar.
Quais os avanços vistos em outros países? A Inglaterra é um país que está avançando muito. Eles fizeram uma ação interessante no ensino médio. Mudaram a obrigatoriedade de certas disciplinas, como química, física e biologia: não é mais necessário fazer as três ao mesmo tempo, e o aluno pode ter sua motivação voltada apenas para biologia, por exemplo. Mas a maior inovação está em garantir uma preparação dentro dessa disciplina para que o professor introduza elementos de química e física. O aluno pode estudar pressão, conteúdo da física, a partir do estudo da capilaridade das plantas, um capítulo da biologia. Isso introduz, de forma agradável, conceitos que são relevantes. O professor tradicional pode dizer que desse modo o estudante não aprende toda a física e a química. Mas eu pergunto: por acaso, ele aprende tudo com o atual sistema de aulas? Provavelmente não, e ainda deixa a escola com raiva das ciências. Se você apresenta um modelo em que o aluno desenvolve apreço pelo método científico e se sente parte do processo, não importa se ele escolheu cursar uma, duas ou três disciplinas, mas, sim, o fato de que, ao escolher, ele possa dizer: “Eu sou corresponsável pelo processo.”
“Seria um erro concluir que a escola não é mais importante. Ela é, mas desde que reconheça a existência do novo processo e que saiba se inserir nessa realidade.”
Fonte:
https://veja.abril.com.br/educacao/para-professores-e-escolas-e-mudar-ou-morrer-diz-estudioso/